O tema dos filmes de “western” não são tiroteios, não são brancos versus índios, não são xerifes e bandidos, não é nem mesmo a fronteira. O tema é sempre um só e o mesmo: a lealdade, a força coesiva sem a qual a sociedade se desmantela. Não por coincidência, é esse também o tema das obras morais de Josiah Royce, o filósofo do Velho Oeste. Acabo de ver “The Ballad of Lefty Brown” e confirmo isso pela enésima vez. É a história de um velho mocorongo que leva um voto de lealdade às suas últimas conseqüências.
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Depois de respirar por várias semanas a poeira de nove ou dez mil livros que haviam ficado num depósito por um ano e meio, peguei uma alergia que, além de me fazer espirrar, lacrimejar e tossir o tempo todo com uma coceira insuportável na garganta, me deixou afônico como uma tartaruga. Se isso não passar em tempo, amanhã não haverá aula do COF. Voltarei a avisar, ok?
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Um ano e meio de espera enervante, despesas sem fim, sacanagens de empreiteiros, alergia, um frio do cão e doses mastodônticas de esforço físico em transportes de coisas e em trabalhos de marcenaria — tudo valeu imensamente a pena. Meu escritório novo saiu EXATAMENTE como o planejei, mas, como ainda faltam alguns detalhes, não vou mostrá-lo ainda. Vou lamber a cria em segredo por uns dias antes de exibi-la.
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Relendo, pela segunda vez, “A Terceira Existência de Joseph Kerkhoven”, de Jacob Wassermann.
O que mais claramente define a personalidade de Joseph Kerkhoven é a consciência de um núcleo vital profundo que as pressões do ambiente, as taras hereditárias e o peso do hábito ameaçam a todo instante enrijecer e tornar quebradiço, e que deve constantemente adaptar-se e renovar-se para permanecer ativo e fiel a si mesmo. Ele observa, consternado, a facilidade com que as almas, levadas pela voragem das forças alienantes, se perdem de si mesmas e desenvolvem toda uma constelação de rituais neuróticos para defender-se de uma angústia que elas mesmas criaram no esforço de evitar o trabalhoso e às vezes humilhante retorno ao seu próprio centro.
Ele aprende a fazer a jornada de volta tantas vezes quanto necessário. Vive, por assim dizer, perto do seu próprio coração, de onde observa as coisas, fatos e pessoas com um realismo e uma compreensão admiráveis. Nisso reside a sua força., mas também a sua limitação permanente: ele não pode negociar nem transigir, tem de permanecer fiel a si mesmo contra todas as circunstâncias, contra todas as adversidades e seduções. É isso o que lhe permite enxergar tão claro na alma alheia ao ponto de perceber o nexo de causa e efeito entre as decisões de ontem e o sofrimento de hoje, entre os compromissos inconscientemente assumidos e as angústias que brotam anos depois como que surgidas do nada. O senso da misteriosa continuidade do destino por entre as falhas de uma atenção volúvel, escandida por mil estímulos fortuitos, é a raiz da sua capacidade de restaurar vidas estilhaçadas e corações retalhados.
Kerkhoven é, sem dúvida, o ”alter ego” do romancista, cuja tarefa não é outra senão a de revelar a unidade dos trajetos humanos por trás das consciências fragmentadas.
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“Poder pessoal” é aquilo que alguém pode fazer por suas próprias forças, sem nenhum apoio externo. Um homem de verdade jamais fala mais grosso do que o seu poder pessoal.